Seminário Cultura para Todos
Financiamento público da cultura e leis de incentivo
VALOR ECONÔMICO - 3 de janeiro de 2003
Os Caminhos e Descaminhos Culturais do Governo FHC
por Yacoff Sarkovas
A oferta cultural, durante os oito anos do governo Fernando Henrique
Cardoso, foi abundante: com a retomada da produção audio-visual, centenas
de filmes re-ocuparam parte, ainda que mínima, da cadeia de exibição do
país e reinseriram nosso cinema no mapa-mundi; surgiram diversos centros
culturais privados, alguns deles administrados e programados com competência
e recursos que faltam a quase todas as instituições públicas; mega-casas
de espetáculos foram construídas para abrigar um show biz nacional e internacional
ávido por grandes platéias; grupos e projetos cênicos independentes continuaram
florescendo por todo o país garantindo a safra de teatro, dança e circo;
a rede de artes visuais diversificou-se por circuitos alternativos e popularizou-se
com mega-exposições que atigiram públicos superiores a campeonatos
de futebol; vicejaram suplementos literários impressos e eletrônicos;
nossa tele-dramaturgia manteve sua qualidade mesmo acossada pela melo-dramaturgia
mexicana; patrimônios históricos urbanos foram recuperados; a música popular
viveu nova onda de reverência internacional, bafejada pela expansão da
world music e a nova bossa da bossa nova, e a música erudita consolidou
programas anuais e atingiu excelência orquestral em uma experiência isolada
na paulicéia.
Apesar dessa efervecência na cena cultural, o Ministério da Cultura
de FHC carregará para história poucos méritos, porque parte destes processos
não foram decorrentes da ação do governo federal e os que foram, são fruto
de improvisação e desperdício.
A exuberância, no varejo, não redime uma grande omissão, no atacado:
em 8 anos de governo, FHC não formulou nem implementou nenhuma política
cultural. Ou seja, faltou o principal: uma visão estratégica do papel
do Estado no campo cultural de uma sociedade inserida no mundo globalizado,
traduzida em planos de ações gerais e específicos para os diversos segmentos
culturais, populacionais, geográficos etc.
O governo FHC nunca teve um projeto de desenvolvimento cultural que
traduzisse seu respeito pela cultura. Acobertou a falta de idéias
para o setor com um sistema de financiamento baseado na dedução integral
no imposto, que subverteu o princípio elementar do incentivo fiscal, que
é o de usar o dinheiro público para estimular o investimento privado.
Tornou as leis de incentivo repassadoras perdulárias do numerário público,
condenando o meio cultural a peregrinar pelas empresas em busca de recursos
do erário que deveriam estar disponíveis em fundos de financiamento direto.
Há mais de uma década, fatores de mercado induzem as empresas a associar
suas marcas a ações de interesse público em múltiplos campos. O patrocínio
tornou-se uma estratégia eficaz para atingir objetivos institucionais,
promocionais e de relacionamento, canalizando recursos de comunicação
empresarial para projetos comunitários, ambientais, esportivos e culturais.
Em 2001, os patrocínios no planeta movimentaram nestas áreas US$ 23,6
bilhões[1] , sem contar os recursos das fundações e instituições empresariais.
Este investimento é impulsionado pelo desgaste da publicidade e da promoção
convencional que requer canais diferenciados e segmentados de envolvimento;
pela valorização das ações que irradiam atributos desejados pelas marcas;
pela expansão do senso de responsabilidade social nas empresas que beneficia
as formas de comunicação éticas e de efeito residual positivo para os
consumidores-cidadãos.
No Brasil, a combinação destes fatores já fazia florescer a participação
empresarial na cultura, antes mesmo da existência do incentivo fiscal,
implantado pela Lei Sarney, em 1986, sucedida pela Lei Rouanet,
a partir de 1991, ambas regidas pelo princípio da dedução parcial.
Ou seja, estimulavam as empresas a investir recursos próprios, permitindo
que parcela do patrocínio fosse resgatado pela redução do seu imposto
de renda.
Até que surgiu a Lei do Audiovisual, em 1993, com a surreal alíquota
de 125% de dedução: a empresa não só podia abater integralmente o valor
investido na aquisição de cotas de filmes, como ainda lançá-lo como despesa,
reduzindo, indiretamente, mais imposto. Por escapar a qualquer lógica,
era evidente que a fórmula foi implantada por ignorância: confundiu-se
dedução da renda bruta com dedução do imposto a pagar. Mas como a aplicação,
na época, era limitada a 1% do imposto a pagar, a Lei "não pegou"
e não provocou maiores danos.
Ao assumir em 1994, FHC herdou do governo Itamar o Ministério da Cultura,
antes extinto por Collor, e as duas Leis, até então inoperantes.
Importante ressalvar que a Lei Rouanet não era uma mera lei de incetivo
fiscal. Ela instituia o Programa Nacional de Apoio à Cultura, com a finalidade
de captar e canalizar recursos para o setor por três mecanismos: o Fundo
Nacional da Cultura - FNC; o Fundos de Investimento Cultural e Artístico
- FICART e o Incentivo a Projetos Culturais, este sim voltado ao patrocínio.
Ou seja, os formuladores da Lei Rouanet tinham consciência que um
sistema de financiamento à cultura não se sustenta em um único pé. Primeiro,
a Lei estabelecia o princípio do fundo público, o FNC, essencial para
viabilizar ações de mérito cultural que não encontram abrigo no mercado.
Na ponta oposta, estimulava, pelo FICART, às atividades culturais lucrativas,
proporcionando benefícios aos seus investidores. E por último, oferecia
incentivo fiscal para o patrocinio e a doação privada, na parte da Lei
que a tornaria conhecida.
O Ministério da Cultura de FHC manteve o FICART paralisado e não regulamentou
o acesso ao FNC, distribuindo os recursos deste fundo sem critério e sem
transparência. E na falta de programa e planejamento, apostou todas as
fichas no instrumento do incentivo fiscal. Aprimorou pontualmente sua
operacionalidade e ampliou seu limite de aplicação de 2% para 5%
do imposto a pagar das empresas. Mas manteve a contrapartida de recursos
da empresa entre 70% e 60%, permitindo a dedução entre 30% e 40%
do valor patrocinado ou doado.
Em agosto de 1996, o MinC de FHC perdeu o rumo definitivamente. Sem
corrigir a aberração da dedução de 125% da Lei do Audiovisual, colocou-a
em movimento ampliando em 200% seu limite de aplicação, que passou de
1% para 3% do imposto a pagar. A soma da dedução fiscal com as comissões
cobradas por agenciadores e a revenda dos certificados promovidos
legalmente pelas empresas, que perceberam que poderiam leiloar suas disponibilidades
fiscais entre os produtores interessados nos recursos, atingia mais de
50% do valor da operação. Pela aritmética da Lei do Audiovisual, para
que R$ 60 cheguem ao caixa do filme, se consomem R$ 125 de dinheiro público,
sem qualquer contrapartida privada (vide quadro).
Foi por este processo irracional que o governo FHC financiou o renascimento
do cinema brasileiro. E o pior estava por vir. Com a Receita Federal limitando
a soma dos incentivos fiscais a 5% do imposto a pagar e a Lei do Audiovisual
consumindo 3% de um número crescente de empresas, restaram somente 2%
para aplicação na Lei Rouanet, que cobria todas as áreas culturais, incluindo
o próprio cinema, que dela também se valia.
Sem referência histórica de financiamento público, nem compreensão da
lógica do patrocínio empresarial, grupos organizados de diversos segmentos
artísticos passaram a pressionar o governo para que a Lei Rouanet oferecesse
dedução integral no imposto. Mesmo ciente das distorções da Lei do Audiovisual,
o MinC decidiu estender seus vícios. Em 1997 legalizou 100% de dedução
para o patrocínio em quatro segmentos e, em 2001, à praticamente
todos os demais.
Talvez por não dispor de um projeto de desenvolvimento para o setor,
o MinC de FHC renunciou a função de induzir processos culturais. Ao transferir
para as empresas recursos e responsabilidades do Estado, cometeu múltiplos
equívocos: investiu dinheiro público sem a efetiva garantia de atender
o interesse público; não formou reais investidores privados, pois ninguém
aprende nada gastando dinheiro alheio; deformou o mercado de patrocínio,
incutindo na cultura empresarial a isenção sem contrapartida.
É necessário que as empresas apliquem seu próprio dinheiro e tenham a
liberdade de escolher os projetos que melhor atendam seus interesses.
Só assim esse investimento faz sentido. O patrocínio empresarial atende
um número expressivo de ações, mas não contempla a diversidade e extensão
das demandas culturais de uma sociedade. Por isso, é fundamental que o
Estado disponha de linhas de investimento direto.
Assim, o novo governo tem diante de si a tarefa de redesenhar o sistema
de financiamento à cultura e desmontar, cuidadosamente, o modelo em vigor.
Não seria prudente revogar de forma súbita os instrumentos existentes,
uma vez que são a única fonte de financiamento disponível e possibilitam
a realização de centenas de atividades culturais que envolvem profissionalmente
milhares de artistas, intelectuais, técnicos e administradores.
O fardo de distorções a corrigir é pesado: os investimentos estão
concentrados nos grandes centros econômicos do país e boa parte beneficiam
uma parcela pequena da sociedade, mantendo à margem uma vasta população
de excluídos culturais; dispende-se volumes expressivos de recursos em
produções artísticas que não circulam e se esgotam em poucas exibições
para poucos; a rede de instituições culturais públicas está estruturalmente
insolvente, sobrevivendo com o "caixa dois" das "sociedades
de amigos"; o patrimônio histórico e artístico nacional padece de
sustentabilidade; grupos culturais independentes não dispõem de recursos
institucionalizados para manutenção, pesquisa e intercâmbio; a produção
editorial está confinada a uma ínfima rede de livrarias e a uma elite
de leitores; o modelo de produção audiovisual é cronicamente inviável.
O sistema perdulário de financiamento do Ministério da Cultura do governo
FHC ao menos re-comprovou nossa fertilidade cultural: em se plantando,
dá. Os recursos ampliaram expressivamente a oferta cultural e resultaram
em muitos projetos de qualidade.
O desafio do Ministério da Cultura de Lula será atingir os objetivos
estabelecidos, há mais de dez anos, no Artigo 1º do Programa Nacional
de Apoio à Cultura:
- "facilitar, a todos, os meios para o livre acesso às fontes da
cultura e o pleno exercício dos direitos culturais;
- promover e estimular a regionalização da produção cultural e artística
brasileira, com a valorização de recursos humanos e conteúdos locais;
- apoiar, valorizar e difundir o conjunto das manifestações culturais
e seus respectivos criadores;
- proteger as expressões culturais dos grupos formadores da sociedade
brasileira e responsáveis pelo pluralismo da cultura nacional;
- salvaguardar a sobrevivência e o florescimento dos modos de criar,
fazer e viver da sociedade brasileira;
- preservar os bens materiais e imateriais do patrimônio cultural e
histórico brasileiro;
- desenvolver a consciência internacional e o respeito aos valores culturais
de outros povos ou nações;
- estimular a produção e difusão de bens culturais de valor universal
formadores e informadores de conhecimento, cultura e memória;
- priorizar o produto cultural originário do País."
Como se vê, não há muito mais o que prometer. Só a fazer.
Yacoff Sarkovas
Presidente da Articultura Comunicação
e consultor de patrocínio empresarial
© 2003
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