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Seminário Cultura para Todos
Financiamento público da cultura e leis de incentivo
VALOR ECONÔMICO - 11 de Julho de 2003
Cultura tributária
por Yacoff Sarkovas
Por que a reforma tributária pode provocar um colapso econômico
na área cultural? Por que as leis de incentivo são o principal
assunto da agenda do Ministério da Cultura? Aliás, por que
o Ministério da Cultura é, na verdade, o "Ministério
das Leis de Incentivo"? Por que, afinal, no Brasil, e somente no
Brasil, a cultura é afetada tão diretamente por questões
fiscais?
Porque no Brasil, e somente no Brasil, a dedução fiscal
é o principal mecanismo de financiamento público à
cultura. Desvirtuadas da função de estímulo suplementar
do patrocínio empresarial às artes, as leis de incentivo
tornaram-se uma forma insensata de financiamento do Estado.
Os governos têm a responsabilidade de estabelecer objetivos e elaborar
estratégias para sua ação nos processos de pesquisa,
criação, produção, circulação,
intercâmbio e preservação dos diversos segmentos artísticos,
e garantir a todos os extratos da população e a todas as
regiões do país amplas condições de fruição
e expressão cultural. Estas políticas devem orientar o investimento
do dinheiro público suficientemente previsto nos orçamentos
dos municípios, dos estados e da federação. Mas nada
disto acontece. Salvo exceções, raras e pontuais, não
há diretrizes. E os minguados recursos alocados sequer cobrem os
gastos de manutenção dos próprios aparelhos culturais
do Estado.
O dinheiro público que movimenta nossa produção
cultural percorre o tortuoso caminho do incentivo fiscal por meio da dedução
de impostos federais, estaduais e municipais, e sua distribuição
obedece à lógica e ao interesse empresarial. Não
há nada de errado nisto, quando o dinheiro é, de fato, privado.
A associação das marcas a projetos culturais é uma
poderosa estratégia para atingir objetivos corporativos e mercadológicos,
o que motiva as empresas em todo mundo, inclusive no Brasil, a investir
parte de seus orçamentos de comunicação em patrocínio.
Mas as leis de incentivos fiscais permitem a dedução integral
do imposto a pagar, tornando a empresa, neste caso, mera repassadora dos
recursos do Estado, despendidos sem atender objetivos coletivos e parcialmente
consumidos por um sistema de intermediação que envolve aprovadores,
captadores, auditores, entre outras atividades úteis e dignas no
regime do mercado, mas não necessárias para o investimento
público.
Se grande parte dos recursos de projetos com incentivo fiscal é
100% do Estado (125% na famigerada Lei do Audiovisual!), por que pulverizá-los
e transferí-los aleatoriamente para o caixa das empresas, obrigando
o meio cultural a peregrinar em território privado à cata
do dinheiro público? Esta pergunta óbvia não é
formulada pela maioria dos produtores, promotores, artistas, ministros,
secretários, deputados, senadores e jornalistas. Como que possuídos
por um encantamento, nada enxergam além das leis de incentivo,
limitando o debate à busca de fórmulas mágicas para
"corrigir suas distorções", "ampliar sua
abrangência", "beneficiar regiões carentes",
"democratizar o acesso", "eliminar a intermediação",
"fazer o controle social".
Não se resolvem problemas estruturais com ações
cosméticas. É impossível atender à diversidade
e à extensão das demandas culturais da sociedade com um
sistema baseado em incentivo fiscal. Enquanto este paradigma não
for quebrado, tudo continuará como está. Se a premissa para
a política cultural fosse o investimento direto, a agenda seria
outra. A discussão estaria centrada na constituição
de fundos de financiamento, nas garantias de sua sustentabilidade orçamentária,
nos critérios técnicos de avaliação de projetos,
nos mecanismos independentes de seleção, no planejamento
da transição sem sobressaltos.
E por que o meio cultural não se mobiliza para instaurar a transferência
dos recursos públicos despendidos na dedução de impostos
para fundos de financiamento municipais, estaduais e federais, ação
que não afetaria o equilíbrio fiscal? Uma parte, por mero
desconhecimento desta possibilidade. Outra parte, por temer que o dinheiro
seja gasto pelo próprio governo, tragado na sua insolvente infra-estrutura
cultural ou distribuído aos seus apaniguados políticos.
E uma minoria, com amplo acesso à mídia e ao poder, porque
urdiu o sistema em vigor sob medida a seus interesses pecuniários.
Ao contrário do que apregoam estes donatários da verba
estatal que amedrontam os incautos com o velho fantasma do dirigismo,
é possível, sim, estruturar um sistema de investimento cultural
eficiente, plural, democrático, transparente, regido pelo mérito
e pelo interesse público. Não faltam modelos em funcionamento
em diversos países, não só do "primeiro mundo".
E mesmo no Brasil, é possível se espelhar nos mecanismos
de financiamento da área científica, como a FAPESP.
Quanto ao patrocínio das empresas, o fim do anabolizante fiscal
revelaria sua verdadeira dimensão econômica. Livre de um
cipoal de normas e de seus parasitas, deixaria de ser matéria tributária
para tornar-se exclusivamente ação estratégica. Cresceria
estimulado pela necessidade de gerar resultado, irrigando a cultura com
recursos privados reais, como ocorre nas áreas ambiental, social
e esportiva, que não sucumbiram, ainda, ao perverso encanto das
leis de incentivo e desenvolveram formas concretas de sustentabilidade.
Yacoff Sarkovas
Presidente da Articultura Comunicação
e consultor de patrocínio empresarial
© 2003
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