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Seminário Cultura para Todos
Financiamento público da cultura e leis de incentivo
Folha de S.Paulo - 9 de Julho de 2003
TENDÊNCIAS/DEBATES
Quem paga a conta da cultura
YACOFF SARKOVAS
O financiamento à cultura provém de quatro fontes distintas e complementares:
o Estado, o investimento social privado, o patrocínio empresarial e o
mercado consumidor. No Brasil, a falta de compreensão sobre a natureza
e as motivações dessas fontes levou boa parte do meio cultural a cometer
equívocos estratégicos, como abrir mão de fundos públicos de financiamento
e se tornar cúmplice de um sistema de incentivo fiscal que transfere dinheiro
e responsabilidade públicos para o interesse privado.
Por ser um gênero de primeira necessidade e fator condicionante da transformação
individual e coletiva, a criação intelectual e artística é questão de
interesse público, o que exige e justifica investimentos públicos. No
Brasil os ínfimos orçamentos para a cultura do Estado são dragados por
sua própria estrutura, anacrônica e ineficiente, pouco ou nada restando
ao investimento direto.
Mais grave do que a falta de recursos é a falta de visão estratégica
do papel do Estado na cultura de uma sociedade inserida no mundo globalizado.
Não há diretrizes nem planos de ação cultural para os diversos segmentos
artísticos, populacionais, geográficos etc. Não há estratégias públicas
para formação, pesquisa, criação, produção, circulação, fruição, intercâmbio,
preservação.
O último governo atingiu o ápice dessa omissão. Sem dispor de projetos
para o setor, o Ministério da Cultura de FHC instaurou um sistema de financiamento
baseado na dedução integral do imposto, que subverteu o princípio elementar
do incentivo fiscal, que é o de usar recursos públicos para estimular
o investimento privado. Transformou as leis de incentivo em repassadoras
perdulárias do dinheiro público, condenando o meio cultural a peregrinar
pelas empresas em busca de recursos do erário que deveriam estar disponíveis
em fundos de financiamento direto.
Ao transferir para as empresas capital e responsabilidades do Estado,
o Ministério da Cultura comete múltiplos equívocos: investe sem a efetiva
garantia de atender o interesse público; não forma reais investidores
e patrocinadores privados, pois ninguém aprende nada usando a carteira
alheia; deforma o mercado de patrocínio, inoculando na cultura empresarial
a isenção sem contrapartida. As empresas têm motivações próprias para
investir em ações de interesse público, independentemente de dedução fiscal.
Um estudo do Ipea revelou que 59% das empresas brasileiras estão desenvolvendo
ações em benefício da comunidade, aplicando cerca de R$ 4,7 bilhões (dados
de 2000).
Na ponta desse movimento, o mecenato e a filantropia cedem lugar ao
conceito de investimento social privado que incorpora ferramentas típicas
do setor empresarial, como o planejamento e o monitoramento, para buscar
soluções sistêmicas e estruturais. Nos EUA, os institutos e fundações
empresariais estendem suas atividades ao campo cultural, dispondo fundos
para os mais variados projetos e segmentos artísticos. No Brasil, um dramático
quadro de desigualdade induz a maioria do investimento privado para ações
relacionadas à pobreza e à exclusão social.
O estudo do Ipea revela que 76% das empresas declaram realizar atividades
sociais por razões humanitárias, sendo que 62% se voltam ao segmento infantil.
Se não justifica, esse cenário ao menos explica por que aqui esses recursos
só beneficiam a arte como meio ocupacional e/ou educacional de populações
carentes. Para ter acesso ao investimento social privado, o setor artístico
terá de convencer indivíduos, empresas e instituições de que a inclusão
cultural é, em si, transformadora. De que as artes estimulam os sentidos,
formam a identidade, constróem a cidadania. Acomodados em oferecer dedução
de imposto, os produtores culturais perderam espaço para as organizações
sociais e ambientais, que, sem dispor de leis de incentivo, profissionalizaram-se
para buscar esses fundos. Ainda fora do alcance da ação social privada,
o campo cultural é irrigado por recursos de outra natureza.
Desde a década de 80, fatores de mercado induzem as empresas a associarem
suas marcas a ações de interesse público, como estratégia para atingir
objetivos institucionais, promocionais e de relacionamento. Isso resulta
na aplicação de verbas de marketing e comunicação empresarial em projetos
comunitários, ambientais, esportivos e culturais. Em 2001 o patrocínio
nessas áreas movimentou, no mundo, US$ 23,6 bilhões. No Brasil, o patrocínio
à cultura floresce antes do incentivo fiscal, inaugurado pela Lei Sarney,
em 1986.
As distorções produzidas pela dedução integral do patrocínio no imposto
a pagar, adotada na gestão Weffort no Ministério da Cultura, turvam a
percepção de que um número expressivo de ações culturais, que atendem
à identidade e ao interesse do público-alvo de marcas de empresas, é realizado
com dinheiro empresarial. A obtenção do patrocínio exige conhecimento
das estratégias e objetivos de comunicação e a interação com as áreas
de marketing corporativo e de produto das empresas.
A compreensão do universo da transação comercial, mesmo que básica,
ajuda o gestor cultural a considerar e lidar com seu próprio público,
financiador direto da sua atividade. Adquirindo ingressos para filmes,
shows, espetáculos e exposições, obras de arte, livros, revistas, jornais,
CDs, vídeos, DVDs ou assinaturas de TV a cabo, o público é agente econômico,
tanto da indústria cultural como da mais singular e alternativa expressão
artística.
Reconhecendo que a cultura depende, em maior ou menor escala, do seu
mercado de consumo, o gestor cultural acabará por se render ao domínio
da ciência que rege as transações: o marketing. Entender e atender o público
não é só tarefa para fabricantes de sabonetes e automóveis, mas também
para administradores de museus, orquestras e companhias de dança. Isso
não significa pasteurizar a criação artística ao gosto do freguês, mas
saber onde disponibilizá-la, por quanto apreçá-la, como promovê-la.
Agora que diversos segmentos artísticos se mobilizam para discutir políticas
culturais, que pequenos grupos tramam para manter privilégios e que o
Ministério da Cultura de Lula abre discussão sobre investimento público,
é hora de buscar formas reais de sustentabilidade da cultura brasileira,
diversificando suas fontes de financiamento.
Para tanto, é fundamental exigir que o Estado assuma sua responsabilidade
de formular e financiar políticas culturais públicas; esclarecer os investidores
privados de que a inclusão cultural promove a inclusão social; compreender
que a relação da cultura com a comunicação empresarial não depende de
incentivo fiscal; e considerar que o acesso público é premissa para a
produção cultural.
Yacoff Sarkovas
Presidente da Articultura Comunicação
e consultor de patrocínio empresarial
© 2003
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